Quando entrei no Jornalismo, no início de 1968, Carlos Fehlberg já era uma espécie de
lenda entre os colegas. Formado em Medicina, porque a mãe queria que o filho fosse
médico, nunca exerceu a profissão. Dedicou-se totalmente à comunicação. Foi excelente
repórter e colunista de política. Conheci-o em alguma coletiva que dividimos com
outros colegas. Eu, repórter do Diário de Notícias. Ele, da sucursal do Jornal do Brasil.
Não lembro exatamente como foi este primeiro contato.
Amigos comuns, que haviam trabalhado com ele na Última Hora, costumavam lembrar-
se das histórias do Fehlberg, um repórter que não media esforços para conseguir uma
informação. Escondia-se atrás de armários e cortinas para acompanhar reuniões
políticas fechadas à imprensa, o que lhe valia bons furos (notícias exclusivas). No
tempo da Última Hora também trabalhava no Jornal do Dia, publicado pela Diocese de
Porto Alegre.
Fehlberg nos deixou no domingo, 15/1/2023, em Florianópolis, onde residia desde
1992. Sofria de Alzheimer, tivera um AVC e, no domingo, 8/1/, sofreu um infarto
agudo do miocárdio. Estava prestes a completar 89 anos. Era da turma de 1934 (nasceu
em Bagé no dia 10 de fevereiro), que agitou o jornalismo gaúcho, no jornal Última
Hora, criado por Samuel Wainer. Carlos Machado Fehlberg foi um tipo diferenciado de
jornalista. Vivia no mundo das notícias. Desconhecia convenções, protocolos, ditames
da moda e driblava o sono enquanto podia. No seu planeta redondo, só havia lugar e
tempo para a informação. Ficava até de madrugada nas redações, atualizando o
noticiário, conversando com suas fontes. Sempre em longos telefonemas. Conhecia e
era conhecido por todas as autoridades gaúchas e muitas nacionais.
Com este perfil, Fehlberg protagonizou várias histórias. Desde desfilar pelas redações
com sapatos diferentes em cada pé, meias saindo da calça sobre as outras recém-
colocadas até fazer o papel da empresa no cuidado com seus funcionários. Cada um(a)
dos(as) profissionais, de todas as idades, que trabalharam com ele em Porto Alegre,
Brasília e Florianópolis, tem algo a contar. São memórias de um homem desatento
consigo, mas atento às necessidades dos que trabalhavam com ele.
Dorva Rezende, Miriam Santini de Abreu e Humberto Pinheiro Lauda, repórteres e
diagramador do Diário Catarinense, recordam-se de atitudes semelhantes. Dorva,
quando seu segundo filho estava para nascer, pediu adiantamento do 13º. salário, para
poder pagar o anestesista. A burocracia da empresa emperrou e o subeditor se
perguntava onde conseguir a grana. Uma semana antes da cesariana, Fehlberg chamou-o
em sua sala e lhe deu o dinheiro do próprio bolso. Miriam Santini precisava pagar o
empréstimo da faculdade e não tinha como. Pediu ao chefe um adiantamento salarial,
que recebeu. “Mas nunca vinha o desconto em folha. Investiguei e soube que o dinheiro
era dele, não da empresa”. A repórter economizou e, no fim do ano, juntou as
economias ao décimo terceiro, colocou o dinheiro num envelope, que deixou sobre a
mesa dele. Humberto Pinheiro Lauda trabalhou dobrado durante um mês, mas o valor
acordado não apareceu no fim do mês. Ele reclamou com o diretor de redação. “Quanto
o jornal ficou te devendo?”, perguntou Fehlberg. Ao saber a quantia, pagou Humberto
com seu dinheiro.
Rumo a Brasília
Ao ser designado presidente da República, o general Emílio Garrastazu Médici,
convidou o repórter gaúcho a assumir a sua assessoria de imprensa. Fehlberg não gostou
muito da ideia. Mas as direções do Jornal do Brasil e Zero Hora exerceram pressão para
que ele assumisse o cargo em Brasília. Foi o que fez. Lembro-me bem de uma visita de
Médici a sua terra natal, Bagé. Não sei mais por que, repórteres, fotógrafos e
cinegrafistas resolveram fazer um protesto. Os da canetinha colocaram blocos e canetas
no chão. Os das imagens, câmeras. Tenho gravado nitidamente na minha memória a
figura do Fehlberg indo em nossa direção negociar o fim da “paralisação”. Demorou um
pouco, mas ele se mostrou um bom negociador e teve sucesso na sua missão.
Antônio Goulart trabalhou com ele no Planalto e lembra-se de “algumas histórias
curiosas desse período”. Uma delas: “Fehlberg era meio descuidado no modo de se
vestir. Nunca ajeitava direito a gravata. Lembro-me da vez em que ele foi chamado ao
gabinete do presidente e saiu às pressas de sua sala. Foi quando vi sua secretária, dona
Nilza, correndo atrás dele, chamando-o quase aos gritos: ‘Doutor Fehlberg, sua camisa
está solta, aparecendo atrás do casaco. Deixa que eu ajeito para o senhor’”.
Um fato semelhante aconteceu 20 anos depois no Diário Catarinense. Pela manhã,
Fehlberg participou de uma reunião de diretoria. Depois, saímos para almoçar na minha
casa. Ele vestia uma calça cinza e um casaco azul-marinho. Não me surpreendeu. Ele
nunca deu importância ao que vestia. Na volta à redação, lá pelo meio da tarde,
apareceu a secretária do Pedro Sirotsky, presidente da RBS em Santa Catarina. “Seu
Fehlberg, o senhor está com o casaco do seu Pedro”, disse ela. Muito surpreso, ele se
voltou para ver o casaco pendurado no espaldar da cadeira. Olhou, tocou, pensou e
concordou: “É, acho que é”. Pedro teve de ir sem casaco a uma audiência com o então
governador de Santa Catarina Vilson Pedro Kleinübing.
Jornalista e escritor conhecido, Liberato Vieira da Cunha afirma que o amigo foi “um
jornalista de exceção, que marcou para sempre a História do Jornalismo do Rio Grande
do Sul, Santa Catarina e Brasil”. Moisés Mendes, repórter, blogueiro e colunista de
política, descreve-o como “um dos bichos grandes do Jornalismo que conheci já como
bicho de comando da redação, como se aquilo fosse a sua floresta. Exigente, às vezes,
assustadoramente impositivo, mas sempre respeitoso”.
Experiência televisiva
Iniciei uma ótima relação de trabalho com ele no final dos anos 1970, quando o nosso
amigo Carlos Bastos, diretor do Departamento de Jornalismo da TV Gaúcha, hoje RBS
TV, nos convidou para integrar a equipe do telejornal que iria ao ar à noite. Eu seria
editora e Fehlberg, comentarista político. No contato diário, fomos sedimentando a
amizade, baseada no respeito, admiração e confiança mútuas.
Fehlberg chegava à televisão em cima do laço, quando estávamos enlouquecidos
fechando o roteiro, que teria de ser impresso em várias cópias num mimeógrafo a
álcool. Entrava rapidamente na redação, arrastando os pés, como sempre fez. Queria
atenção. Repassar o texto comigo, saber a minha opinião. Eu correndo para um lado e
ele me puxando para o outro. Sempre foi uma pessoa focada nas informações. Era o
último a entrar no estúdio e o assistente passava trabalho para colocar o microfone na
lapela do seu casaco. Naquela época o microfone ficava ligado a um fio, que se estendia
pelo estúdio afora.
Fehlberg também era uma pessoa inquieta. Não conseguia ficar parado. Mexia-se e
prejudicava o áudio. Todas as noites, eu pedia que o assistente ficasse por perto dele
para evitar que o microfone saísse do lugar. Quando ele terminava o comentário,
simplesmente levantava da cadeira, já pensando em voltar para Zero Hora, onde era
secretário de redação. Saía levando o assento, o longo fio e o microfone. Uma balbúrdia.
A cena se repetia a cada noite.
Anos depois, no início dos anos 1980, ele me convidou para assumir a editoria de geral
da Zero Hora. Levou-me para conversar com Lauro Schirmer, diretor do jornal, de
quem fiquei muito amiga. Em ZH conheci outras facetas do Fehlberg: atravessava a
redação quase correndo, sem ver o que tinha na frente, pensando em como dar um furo
no concorrente, o Correio do Povo. Comprava algo para comer – bolo, pão de queijo,
sanduíche – que coubesse no bolso do casaco. Assim, andava de um lado ao outro,
beliscando o que tinha no bolso para matar a fome. Maria da Graça Dantas Guindani,
diagramadora, me recordou que aos domingos o cardápio era outro. Fehlberg pedia ao
seu Nilo que fosse até a Azenha comprar um daqueles franguinhos assados nas
conhecidas televisões para cachorros. Abria o pacote de papel alumínio sobre a mesa
branca de sua sala e ia petiscando o jantar que, educadamente, sempre oferecia para
quem aparecesse em sua sala.
Novas facetas
Em Zero Hora, descobri que ele era um ótimo médico, apesar de nunca ter se dedicado à
Medicina. Conhecia todos os remédios de última geração para qualquer doença (era
hipocondríaco). Os colegas preferiam consultá-lo quando sentiam algum sintoma, fosse
qual fosse. Fehlberg sempre acertava na receita. Nenhum de seus “pacientes” reclamou
do doutor.
Quando fechava a porta de sua sala, era certo que estava ao telefone ou escrevendo a
sua coluna política. Batia com força e rapidez nas letras da máquina e, posteriormente,
do computador, com apenas os dois indicadores. Algumas vezes, somente com o
indicador da mão direita. Sentava para escrever apenas depois de ser cobrado várias
vezes que o baixamento (envio do material para a oficina) de sua coluna estava
atrasado. Isto não o impedia de pedir para o redator Adroaldo Bauer Corrêa revisar o
seu texto. “No copidesque – diz Adroaldo -, estranhei muito a primeira vez que me
pediu pra ler a coluna dele e conferir a redação (objetiva, sintética, densa, correta).”
Tinha prazer em ligar para suas fontes e amigos jornalistas e saber, antes mesmo dos
repórteres de política, os bastidores das chamadas e manchetes. Atrás dele, havia uma
parede branca (acho que de Eucatex ou qualquer outro material da mesma família). Ali
ele anotava os telefones das novas fontes. Ia falando ao telefone enquanto transformava
a parede na sua agenda. Um início de tarde, quando chegou para trabalhar, Fehlberg se
deu conta que não tinha mais agenda. Uma das funcionárias da limpeza havia passado
um pano naquela “sujeira” e dado fim a uma agenda com números exclusivos.
As histórias são muitas. Nos separamos quando fui trabalhar em Brasília e nos
reencontramos em Florianópolis no Diário Catarinense, já nos anos 1990. Dividíamos o
amor pelo Jornalismo, a política e o cinema. Muitas vezes, na madrugada, ao sair do
jornal, fomos para minha casa comer algo e ver um filme que nos interessava.
Depois de 40 anos de profissão, ele seguia em busca da última notícia, para entregar um
jornal mais atualizado possível, mesmo que fosse apenas para um bairro da capital. Era
o terror da diretoria industrial, que queria cumprir os prazos de impressão dos jornais,
mas era obrigada a parar a rotativa para trocas nas páginas. Marcelo Rech, presidente-
executivo da ANJ – Associação Nacional de Jornais afirma: “Fehlberg foi um mestre da
notícia quente e, como repórter, era uma bênção tê-lo na chefia da redação. A gente
podia começar a apuração de alguma matéria às 10 da noite que ele dava um jeito de
segurar a capa. O terror do industrial, mas um obcecado pela última informação”.
Nikão Duarte, jornalista e professor, foi um dos interlocutores de Fehlberg, nos
telefonemas das noites e madrugadas. Nikão trabalhava na sucursal da RBS, em
Brasília, e costumava receber as chamadas tardias. Parece que o estou vendo quase
deitado em sua cadeira preta giratória, que ia de um lado para outro, enquanto falava e
anotava os dados que o interessavam para uma matéria ou coluna. Diz Nikão: “Fehlberg
faz parte da História do Jornalismo, com importante participação por onde transitou, e
com generosidade para com quem conviveu profissionalmente”.
Livro e família
Discreto e fiel aos seus patrões, Fehlberg nunca falou dos bastidores da política durante
o governo Médici. Cobrávamos dele um livro sobre a sua experiência jornalística e
sobre os fatos políticos regionais e nacionais, que ele acompanhou por muitos anos.
Pelo que soube – nos separamos, novamente, em 1996, quando voltei para Porto Alegre
e só falamos uma vez ou outra por telefone – ele começou a escrever já no final da vida.
Não conseguiu concluir. Perdemos grandes histórias e um grande profissional, um
homem com acertos e erros, como todos nós.
Ele deixa viúva a jornalista Estela Benetti, a quem conheceu no Diário Catarinense.
Foram casados por 27 anos. Eram, como diz ela, “almas gêmeas”. Ficam as filhas Carla
Monteiro Fehlberg e Cláudia Monteiro Fehlberg, os netos Gustavo Fehlberg Gomes e
Guilherme Fehlberg Gomes, casado com Bruna Rizzo.
Vai em paz, Fehlberg. Poderás fazer um grande jornal onde estiveres, ao lado de amigos
como João Souza, Divino Fonseca, Eunice Jacques, Bella Hammes e tantos outros. Nos
veremos. Por Nubia Silveira