Tenho pensado muito num grande amigo que, inesperadamente, se
transformou numa grande e brilhante estrela no meu firmamento, na manhã
de 13 junho. Penso na nossa convivência de 54 anos. Busco em todos os
cantinhos da memória momentos que dividimos e que o tempo já
esmaeceu. A cada minuto surge com todas suas cores uma nova e rica
lembrança de conversas entre laudas, computadores, chopes, cervejas,
vinhos. Falamos muito nas redações, bares, restaurantes, cafeterias e em
uma viagem que fizemos para participar de encontro internacional de
comunicação no Paraguai.
Sinto, agora, que, apesar de todos estes anos de amizade profunda, não tivemos tempo para falar de tudo que envolve a vida de qualquer pessoa. Nós, por exemplo, nunca falamos sobre religião. Só agora, depois de sua partida, é que fiquei sabendo que ele era agnóstico. “Dona Nubia, a senhora sabia, né, que o vô era agnóstico”, me disse a sua neta, Priscilla de Souza. Não respondi. Fiquei me questionando como não sabia disto. Me sentindo culpada por desconhecer algo tão simples sobre aquele homem fiel a sua família, aos amigos, ao trabalho, às lutas por um país livre e democrático.
Quantas outras coisas não sei? Enquanto me indagava sobre o que mais
ignoro, fui listando os adjetivos que os amigos usavam para qualificá-lo:
sereno, discreto (ou contido), respeitoso, gentil, sensível, tolerante,
empático, solidário, brincalhão, corajoso, bom ouvinte, contador de
histórias, bem-humorado, confiável. Tão confiável que, no final dos anos
1970, a amiga Graça Guindani lhe passou uma procuração com plenos
poderes, que nunca cancelou. Nossa diversão era dizer que até a própria
Graça seria vendida. Quem sabe para um harém?
Liguei para Lizete, com quem meu inesquecível amigo comemoraria 67
anos de casamento, neste 2022. Queria saber como ele era em família, algo
que eu só imaginava, mas não tinha certeza. Em meio a sua dor pela perda
do companheiro – “sei que ainda vou sofrer por muito tempo. Ele era o
meu amor” –, Lizete me confirmou que o marido era a mesma pessoa
casa ou no trabalho: calmo, sereno, jamais levantou a voz, companheiro
dela, dos quatro filhos, netos e bisnetos. “Era uma pessoa sensacional, um
amor, querido, querido. Não tenho nada a falar contra ele. Era a coisa mais
amada.” Foi seu primeiro e único amor.
Redações machistas
O pelotense do bairro Fragata, como lembrou Lourenço Cazarré, começou
no Jornalismo, em Porto Alegre, no final dos anos 50, na Tribuna Gaúcha,
porta-voz do Partido Comunista. Logo foi para A Hora. Era época das
redações tomadas por homens. O verdadeiro clube do Bolinha, em que
Luluzinha não tinha vez. Se não todos, pelo menos a maioria, era machista.
Contavam piadas homofóbicas, das quais riam muito. Em cada frase,
usavam pelo menos um palavrão. Eram boêmios, amigos e amantes de
prostitutas, fregueses conhecidos de cabarés, onde deixavam todo ou quase
todo o minguado salário que recebiam. Precisavam de um emprego – de
preferência, público – para sobreviver. Um ambiente que não afetou o
jovem repórter nem influi no seu comportamento.
O que sempre me chamou a atenção em João Borges de Souza, desde que o
conheci, em 1968, foi sua afabilidade e atenção às colegas que estavam
começando a invadir aquele clube fechado das redações. No início da
Folha da Manhã, em 1969, eu era a única mulher a trabalhar à noite
naquela sala pequena em que nos amontoávamos para fazer o novo e
terceiro jornal da potente Companhia Jornalística Caldas Jr. Às vezes um
ou outro me pedia para sair um pouco da redação. Depois de algumas
saídas, me dei conta que o pedido era para preservar meus ouvidos dos
palavrões que diziam.
Olhando para trás me dou conta da facilidade com que João conquistava
grandes amigas, que lhe pediam conselhos, seguiam suas decisões, viviam
ao seu redor. Ele foi um líder dos jornalistas num momento difícil, em que
vivíamos, sob a ditadura militar. Para o grupo de amigas foi mais do que
líder: um irmão pronto para ouvir dúvidas, problemas, responder com
serenidade, orientar, aconselhar. Para algumas perguntas, tinha respostas
prontas:
- João, vou comprar um apartamento. Em quantos anos achas que devo
pagar o financiamento imobiliário?
- Qual é o máximo de anos em que podes pagar?
- 30.
- Então paga em 30. Não sabes o que vai acontecer no futuro.
Era um homem prático.
Depoimentos
Quando o Nilson Souza, diretor da ARI e articulista da Zero Hora, me
pediu um texto sobre o De Souza, como seguidamente chamávamos o João,
me alertou que deveria ter dois mil caracteres. Já tenho,até aqui, mais de
quatro mil. Este será um texto longo, porque pedi o depoimento de dois
grandes amigos de início de carreira e de cinco amigas, que estiveram ao
seu redor, desde que o conheceram. Graça Guindani não escreveu, mas me
autorizou a usar a história da procuração. Aqui vão os testemunhos de
Carlos Bastos, Floriano Soares, Gecy Belmonte, Regina Vasquez, Lorena
Paim e Maria Luiza Kruel Borges (Malu).
Carlos Bastos: “Trabalhei com o João Souza em inúmeras oportunidades:
no jornal A Hora, na Radio Gaúcha, na Última Hora e na Zero Hora. E
aprendi a admirar o João como jornalista, por sua competência, como
personalidade, por sua maneira de ser. Sereno, ponderado, objetivo e até
simples. Em todos os lugares que trabalhou foi um líder e sempre consultor
de seus colegas. Foi presidente do Sindicato dos Jornalistas, num momento
difícil, pois vivíamos o período da ditadura e se conduziu no cargo com
muita altivez e coragem. Eu perdi um colega, um amigo e um guru.”
Floriano Soares: “Dizer quem foi João Souza no Jornalismo do Rio
Grande do Sul demanda, sem dúvida, imersão de mais de meio século, não
só no tempo propriamente, mas com certeza também no que de mais
significativo aconteceu, nesse mesmo tempo. Ainda na juventude, teve
participação ativa nos movimentos sociais que, no Brasil, se seguiram aos
já ocorridos na Europa.
Ali já se desenhava claramente o que o passar do tempo só viria a
confirmar: a firmeza de caráter como traço mais marcante de sua
personalidade. A propósito, ocorre-me agora a lembrança de acontecimento
absolutamente cômico, mas que reafirma o que digo: conversava-se numa
roda de amigos e eis que (sem ser convidado, é claro) aproximou-se um
chato. E como se fosse íntimo de todos, dirigiu-se ao João: "E aí, negão!".
Sem titubear, mas com toda a firmeza, João interrogou o inconveniente:
"Me diz uma coisa: alguma vez te chamei de brancão?!".
Este foi o nosso insubstituível João Borges de Souza!”
Gecy Belmonte: “Conheci o João em 1979 quando comecei a trabalhar na
FT e o coleguismo se transformou em uma sólida amizade. Dividimos um
momento crucial, que foi a greve da Caldas Júnior. Decidida a greve na
oficina do chumbo, voltamos para nossas mesas meio sem saber o que
fazer, com muito receio. Era nossa primeira greve. Devia ser umas 17h. Às
19h, o Galvani chamou para a reunião onde cada editor foi convocado a
dizer qual a posição da sua editoria. O João foi o primeiro a se manifestar
dizendo que a política iria parar. Logo apareceu o Francisco Caldas,
colocou os pés sobre a mesa e disse que estava na hora de cada editor dizer
de que lado estava. Eu era editora interina de Geral, amparada na firmeza
do João, não tive dúvida de escolher o lado diante do dono da empresa.
Aquilo me marcou pra sempre: saber qual era o meu lado. Isso me serviu
de norte pra vida toda. A partir do começo da greve foram dias difíceis.
Fomos impedidos de entrar na empresa por guardas armados, fomos
substituídos por colegas sem experiência, muitos dos quais anteriormente
corrigíamos os textos antes de serem publicados. Depois de meses
ganhamos na Justiça o direito à volta. E mais uma vez o João nos norteou:
voltamos sem cargo de chefia. O João passou a reescrever textos de
repórteres inexperientes, chefiado por uma redatora da política medíocre
que ele impedira de ser demitida um ano antes e cujos textos quando ela
revisava/reescrevia ele precisava revisar de novo tal a qualidade do
trabalho dela. Ele não teve nenhum problema em inverter de posição.
Irmanados no degrau abaixo de nossas funções, conseguíamos nos divertir
naquela situação surreal. Mais uma vez ele nos mostrou que o importante
era manter nosso trabalho, exercer o direito que a Justiça nos garantiu.
Depois a empresa fechou. João sempre foi discreto. Em um pais racista ele
não alardeava por direitos, ele os exercia de cabeça erguida e com
dignidade. Quando fiz 30 anos ganhei dele São negros os deuses da África,
com uma dedicatória na qual ele dizia que estava na hora de eu saber um
pouco mais sobre o seu povo. Esse era o João, com um presente ele me fez
saber o quanto isso era importante pra ele. Um amigo querido que vai estar
sempre vivo, comigo.”
Regina Vasquez: “João era um amigo franco e leal, com muito senso de
humor e elegância, nunca o vi perder a compostura nem ser agressivo. Foi
amigo e companheiro em horas boas e ruins.
Como profissional era sagaz e responsável, além de ser um bom líder.
Perseguia a isenção na difícil cobertura da política.
Não se furtava a ensinar nem a criticar, e era generoso com o que sabia.
Sua personalidade cativante e marota, bem como suas maneiras impecáveis
e seu gosto apurado funcionavam como um imã, fazendo com que João
estivesse sempre rodeado de colegas e amigos, em especial as mulheres.
Quando eu estreei no Jornalismo João já era um editor respeitado. Meu
primeiro trabalho com ele foi uma cobertura especial de política, na extinta
Folha da Manhã. Participamos da fundação da Coojornal e depois
voltamos a trabalhar juntos durante vários anos na Caldas Junior. Mais
tarde, tive o prazer de recomendá-lo como editor de política para o Lauro
Schirmer, na Zero Hora.
Nossa amizade não se limitou à convivência profissional e foi duradoura,
incluindo inúmeros encontros fora ou na minha casa. João conheceu bem
meu marido e companheiro, bem como os meus filhos. Mas com sua
família eu nunca convivi, sabia seus nomes e vi alguns de relance, mas
João fazia questão de manter sua vida familiar separada dos amigos
jornalistas.
Quando morei em outros lugares, sempre que ia a Porto Alegre eu fazia
questão de me encontrar com João. Na última vez notei que ele arrastava os
pés e parecia distraído. Eu não sabia, mas era um prenúncio da doença. Na
última vez que falei com ele por telefone senti que ele não sabia quem eu
era, ficou tão desconfortável que passou o telefone para sua mulher, Lizete,
que não me conhecia pessoalmente.
Um episódio que recordo bem é aquele que há pouco contei no Facebook,
quando numa reunião de pauta um editor falou num homem de cor e João
logo atalhou: que cor? Verde? Azul? fazendo todos gargalhar. O imbecil do
editor ainda tentou se explicar e disse que não queria ofender...João não
precisou dizer mais, todo mundo se pôs a falar...
Ele raramente falava sobre racismo, tirava de letra. Mas uma vez me
comentou que uma pessoa branca tinha muito mais oportunidades do que
uma pessoa negra.
João gostava de regras e de rotina, era muito discreto e comedido, embora
afetivo. Sua racionalidade e lealdade sobrepunham-se a paixões. Seu dia
era compartimentalizado, não gostava de misturar as diferentes esferas de
sua vida.
Pela manhã trabalhava na Assessoria de Comunicação do Palácio Piratini e
priorizava o almoço em casa, com a família. De tarde passava na
Assembleia Legislativa para levantar as pautas e depois ia para a redação.
No fim da tarde, ia até a lanchonete e pedia um ovo frito com gema mole e
pão. Quando concluía a edição, saía para jantar e socializar com os colegas
e com fontes de informação.
Era um homem de hábitos frugais, embora apreciasse um bom whisky e
pratos de camarão e peixe fresco bem preparados.
João deixou sua marca e será sempre lembrado com carinho e admiração.”
Lorena Paim: “João Borges de Souza foi, além de colega exemplar,
alguém com quem se podia contar. Não era de dar conselhos, mas suas
posições sobre Jornalismo, política, profissão e tantos outros temas
acabavam balizando muitas das atitudes de quem convivia com ele.
Ponderado, calmo, ético, atento, bem informado, João teve em algumas de
nós, então jovens repórteres, mais do que colegas, amigas. Amizade que
continuou ao longo do tempo, mesmo que estivéssemos em redações
diferentes. João gostava de bater papo, estava disponível a ouvir, e foram muitas as
vezes que pedi a opinião dele sobre tal ou qual assunto. Nunca o vi perder
a paciência nem ser agressivo.
A receptividade do João fazia a diferença e se revelava tanto nos momentos
de compartilhar um cafezinho quanto num jantar com o grupo de amigas.
Foi um mentor sem pretender ostentar esse título.”
Maria Luiza Kruel Borges, Malu: “O que dizer sobre o João que, de fato,
o represente? De início, que ele esteve presente em praticamente todos os
momentos importantes da minha vida. E, só isso, diz o quanto significou
sua amizade para mim. Mas, preciso ainda destacar suas tiradas de bom
humor em várias ocasiões. Como quando ficávamos em mesas lado a lado
na Folha da Manhã, ele como editor de Política e eu, de Nacional, e ele
ameaçava, e às vezes até conseguia, surrupiar parte do lanche integral que
eu trazia de casa. Fingia desconhecer meus argumentos de que no bar do
jornal não conseguiria aquele tipo de alimento. E isso o divertia muito. Sem
contar da higiene, com álcool, que minha mesa (daquelas antigas de aço
com tampo verde) era submetida diariamente. Outro motivo de diversão.
Agora, o João conseguiu, para seu deleite, espalhar minha fama de limpeza
e organização quando, após assistir meu casamento, contar que a primeira
coisa que fiz, antes do padre iniciar a cerimônia religiosa, foi garantir que a
toalha que cobria o pequeno altar para os noivos se ajoelharem, estivesse
perfeitamente esticada. E isso rendeu muitas risadas e inúteis tentativas de
desmenti-lo diante dos demais colegas da redação.”
*Com testemunhos de amigos e amigas.
Por Núbia Silveira/crédito da foto Flavia Boni Licht